Resenhas crísicas # 01: Dead Fish – Labirinto da Memória CD

Eu estive em sua guerra/Limpei suas armas
Eu lotei o seu porão/Matei ser quem eu pensava
Eu defendi suas ideias/Eu desejei o seu futuro
Trabalhei com afinco, te imitei/Eu me nutri do seu lixo
Me tornei educado/Recebi meu salário/Acatei o que me foi dito
Queria ser igual/Já não posso mais…
(Você Conhece Pistóia? In Labirinto da Memória, por Dead Fish, 2024)

Inauguro essa seção de resenhas crísicas do Lengua Armada com o último disco do Dead Fish, lançado em janeiro último. As resenhas aqui, serão sobre materiais culturais ligados, de certa forma, ao que se chama de contracultura, ou cultura de resistência, seja em que formato for, mas principalmente música e livros. Possivelmente também haverá resenhas de materiais da grande indústria cultural (há alguma coisa que está fora dela hoje?), como filmes e afins. E de antemão, se trata de minha interpretação, com o arcabouço de ideias e experiência que possuo e que me movem. Não há profissionalismo, não há análises requintadas e nem ensaios acadêmicos, apesar dos textos aqui sempre possuírem referencias da ciências sociais, história e filosofia. Estas também fazem parte das experiências que possuo. Se busca por tratados acadêmicos, passação de pano, lambeção de bunda, e textos de colunas de estilo de vida e mercado cultural, pode parar de ler por aqui já e ir gastar seu tempo com outra merda qualquer. Se trata de uma leitura crísica sobre materiais que me interessam e gosto, mesmo que tenha uma opinião crítica sobre. Dito isto, vamos à resenha.

Acompanho o trabalho do Dead Fish desde o final da década de 90 do século passado. Principalmente a partir do disco “Sonho Médio”, de 1999. Fui muito mais próximo de outras bandas capixabas como a Mukeka di Rato, a Oposição, a Kusta Pässää e a Dr. Mobral. Até porque estás circularam mais em eventos Anarcopunks ou correlatos, do que a Dead Fish. Mas apesar disto e da letra ruim de “Anarquia Corporation”, que demonstra que a banda não conhece nada sobre anarquismo pra além daquilo que viram no punk, sempre gostei muito do modo de escrever do Rodrigo Lima. Acho o mesmo um bom letrista. Um dos melhores do hardcore, na minha opinião. Gosto muito da relação entre a perspectiva pessoal – geralmente abordando questões sobre amizade e contradições das relações humanas – e os fatos políticos de maior amplitude que Rodrigo faz em suas letras, principalmente ligadas à política nacional. Acho o ponto mais alto da banda. Isso sem contar que a banda que segue na trilha do hardcore melódico, sendo a principal representante deste estilo musical aqui no Brasil, sem cair na repetição de formulas ou em mera cópia das bandas em evidência no estilo. Acredito que seu último disco é uma prova inconteste disto.

Labirinto da Memória, seu álbum mais recente é sua décima obra de estúdio. Lançado no dia 15 de Janeiro último, o álbum, segundo informações repercutidas nas redes dissociativas e nas mídias especializadas, se trata de uma mistura de rememorações pessoais (principalmente de Rodrigo) com os livros Realismo Capitalista, de Mark Fisher (2020) e a Nova Razão do Mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval (2016), dentre outras coisas. Tal como dito, o disco é um apanhando de memórias e referencias e assim o é a arte que compõe o encarte do cd, que além de conter as letras (algo que ao longo do tempo não parece ser mais comum nesse meio), conta com desenhos de referências simbólicas de cada letra, na capa juntamente com o desenho de um elefante tomando chá, numa referência a memória desses mamíferos gigantes e maravilhosos. Ademais, tal referência faz contraponto, em meu punto de vista, a falta de memória política que é comum no Brasil, principalmente, ou ainda, a memória seletiva impressa em nossas mentes pelas redes dissociativas, nos distraindo de nós mesmos e da realidade pragmática através do pragmatismo virtual. A contracapa faz referência ao quarto de um teenager punk rocker das classes médias dos anos 1990, com uma parede com prateleiras, que contêm fotos de família, livros, garrafas, videogame, aparelho de som com toca fitas, discos, cartazes, adesivos e um skate. Tal imagem também ativou minha memória, tanto ao lembrar do quarto que eu dividia com mais três irmãos – com cartazes e livros e muitos discos também, além de pôsteres, mas com infiltração e as paredes carcomidas – como também do quarto de um antigo amigo do hardcore/sxe, filho de um juiz, que tinha um quarto só pra si, bem similar ao da referida contracapa.

Tal memória também foi ativada pelas próprias passagens das letras, muito boas, mas que se caracterizam por um narrador de classe média, com seus conflitos e suas questões e também privilégios. Estes últimos, referenciados por exemplo, no acesso ao sistema de ensino Montessori[1]. Digo isso justamente pelo fato de minha pessoa ter uma origem social distinta da classe que acessou a Montessori, e por ser cria da escola pública, de hospitais públicos e casas de cultura, também públicas – com todas as suas questões –, como também para também fazer um contraponto a certa classe média branca, que ainda é majoritária também nos espaços do hardcore/punk. E evidente, também porque se trata do meu labirinto da memória.

Ainda sobre a memória, algo que chama a atenção e é de suma importância, especialmente neste momento, em que estamos prestes a passar por 60 anos de golpe militar no Brasil, é a postura (ou falta dela) do governo do atual presidente social democrata/progressista Luiz Inácio Lula da Silva tem optado por se silenciar ante a data[2] – especialmente após quatro anos de governo fascista/populista de seu antecessor – numa clara alusão às alianças políticas que tem construído em nome da governabilidade, que remete aos atos de seu governo anterior que levaram Lula a cadeia e a ascensão do neoliberalismo progressista que anda de mãos dadas com o neoliberalismo conservador. Aliás, ambos se retroalimentam. Mas esse tipo de crítica não faz parte do conteúdo das letras do Dead Fish. Nem em outros trabalhos e nem nesse. Nesse aspecto, o Dead Fish não está só. Muitas bandas do cenário Hardcore abriram mão de uma crítica radical durante os anos do bolsonarismo no poder, para fazer coro à uma “ação progressista burguesa” que só enxerga a eleição como um fim em si mesmo. Só essa questão já daria um texto a parte. Mas voltemos a resenha.

Outro ponto interessante é a já citada influência do livro “Realismo Capitalista”[3], de Mark Fisher. Fisher, em muitas de suas análises fala do uso da cultura – e principalmente das culturas de resistência, alternativas ou independentes – pelo capitalismo. Para mim, é muito significativo pensar sobre as culturas de resistência que me formaram enquanto sujeito e como essas duas contraculturas são tematizadas hoje em dia, a ver o Hardcore/Punk e o Rap/Hip Hop. Vejamos essa passagem de Fisher:

É sempre bom lembrar o papel que a mercantilização desempenhou na produção da cultura no século xx. De todo modo, a velha batalha entre apropriação e recuperação, entre subversão e incorporação, parece coisa do passado. Não estamos lidando agora, como antes, com a incorporação de materiais dotados de potencial subversivo, mas sim com sua “precorporação”: a formatação e a moldagem prévia dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista. Prova disso, por exemplo, é o estabelecimento acomodado de zonas culturais “alternativas” ou “independentes”, que repetem infinitamente gestos de rebelião e contestação como se fossem feitos pela primeira vez. “Alternativo” e “independente” não designam nada fora do mainstream; pelo contrário, são, na verdade, os estilos dominantes no interior do mainstream. (FISHER, 2020, págs. 18/19)

Honestamente, no início do século, apesar de não ter contato e nem arcabouço para fazer tal discussão, o Hardcore/Punk em especial já me transmitia essa questão da cultura como esvaziamento e contenção de uma perspectiva radical, ao se tornar um fim em si mesmo. Tal fato já se tornava perceptivo pra mim, quando a representação e a performance da rebeldia, da resistência e da transformação social se tornaram mais importantes do que as ideias e ações em si. Talvez, como Fisher aponta, o Rap/Hip Hop nunca se deparou com esse problema nos EUA, embora particularmente, eu acredite que essa sim, tenha sido uma questão no Rap Nacional, que foi solapada pelo mercado. E o mercado, não é a face predominante do neoliberalismo. A construção da razão neoliberal não é apenas econômica. É subjetiva também. E nada melhor do que produtos culturais que contemplem os anseios dos consumidores, sejam eles “progressistas” ou “conservadores”, para construir subjetividades condicionadas. Afinal, é como diz o Dead Fish em 11 de Setembro, em alusão a Margareth Thatcher: “A economia é o método, o objetivo é mudar a alma”. Mas atualizando a frase, a cultura além da economia, é o método, também, nos tempos atuais.

Por fim, ainda no que se refere a letra de 11 de setembro e a discussão sobre o Realismo Capitalista, e a discussão sobre o neoliberalismo e seu caráter cultural, vale salientar uma questão que me ocorreu enquanto escrevia este parágrafo. Frantz Fanon e Albert Memmi, dois autores anticoloniais, que em suas obras seminais – Pele Negra, Máscaras Brancas, Por uma Revolução Africana, Os Condenado da Terra (Frantz Fanon) e O Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador (Albert Memmi) – apontavam, durante a colonização de África, os aspectos psicológicos e culturais da dominação colonial, ao retratar seus impactos nos povos africanos. A negação de si, de sua cultura e sua constituição enquanto pessoa para a aceitação de uma civilização branca, que se supunha superior. E o que é o neoliberalismo, o capitalismo se não o colonialismo aplicado ao resto do mundo, inclusive o ocidente? E quem ele mantém em permanente miséria, se não – principalmente – as pessoas não brancas?

Por fim, farei aqui, uma sessão música a música do disco Labirinto da Memória, do Dead Fish, com minhas impressões gerais, seguindo a ordem das músicas. Antes de tudo, vale reiterar que apesar de gostar das letras do disco como um todo, para mim é perceptível que o eu narrador das canções trata de temas de forma muito particular, de um lugar especifico de um jovem de classe média que, apesar de tudo, teve muitas coisas garantidas devido a sua origem social e econômica. Logo, em alguns ponto me identifico e em outras me distancio.

Adeus, Adeus – para mim, que fui egresso de duas tradições religiosas, o catolicismo e o budismo da Soka Gakkai/Nichiren Shoshu, além de gostar muito de jogos de palavras, essa letra é um deleite. Eu digo adeus à deus, além de ser uma bela construção, direta e significativa de tão simples que é, ficou gravada na minha cabeça. Uma letra bem construída, com um refrão inteligente e direto e reto, como o punk, por vezes, acerta em cheio. Um Deus que impõe medo/Que pune a felicidade com castigo/Que limita o corpo com culpa/De divino não tem nada/Por favor, saia e feche a porta atrás de você/ E vá para a casa do caralho, disgraça (essa última frase é cortesia do autor desta resenha). Já dizia Kropotkn: A única igreja que ilumina é a que queima!

Dentes Amarelos – uma rememoração da transição de criança – onde tudo é novidade e a inocência ajuda a passar por algumas dificuldades – para um ser adulto – onde as dificuldades de criança tomam corpo e o corpo. Aprendendo a ter orgulho dos meus dentes amarelos/Que rangem quando falo, mas se calo, esfarelam. Há pessoas que não possuem nem dentes amarelos, ao menos para morder e ajudar a deglutir o mundo que lhes é imposto goela abaixo, vale dizer, já que na letra, os dentes ficam amarelos mas não caem.

49 – uma canção sobre relação pai e primogênito, dentro da estrutura hierárquica familiar, ainda assim, estrutura familiar. Os silenciamentos, os papéis pré-determinados, as regras, a autoridade e o fim, que é uma certeza indesejada.

Avenida Maruípe – uma infância resguardada pelos muros de uma casa com quintal, mas que acompanhava inocentemente, o sumiço de pessoas e da mata atlântica em nome dos interesses da ditadura militar, que servia aos interesses estadunidenses. A travessia da avenida e o fim da proteção do lar, que propiciou o conhecimento de fato sobre aquilo que os olhos jovens acompanhavam, mas não entendiam. Sempre lembrar pra nunca repetir, tem um impacto muito forte, especialmente neste momento em que tivemos uma pequena amostra oficial – por quatro anos – do passado que nunca foi embora, principalmente nas periferias, que é de onde eu vim e que onde ainda a ditadura some com os filhos que tortura todos os dias e não há quintal que os proteja. Nunca houve. Ainda assim, uma letra muito boa, por retratar uma memória tão atual.

Interrupção – uma das músicas que mais mobilizam a memória coletiva atual. Disjunção da vida em redes sociais, depressão, hiper sexualização, remédios, falsos desejos e transtornos existenciais sem fim. Realismo Capitalista no talo, enquanto a vida verdadeira se contorce em espasmos durante algum reality show inclusivo e representativo. Quer justificar o injustificável/Controlar a narrativa/Achar algum sentido/Onde não há nenhum.

Estaremos Lá – é uma das musicas mais interessantes no quesito da memória, que é a tônica do disco. Um retrato da violência institucionalizada dos militares e seus braços paramilitares, com seus esquadrões da morte. Esses, que atuavam majoritariamente nas periferias e favelas do Brasil, principalmente no sul-sudeste. E nessa questão, é muito interessante a memória resgatada da Scuderie Le Cocq[4], um grupo de extermínio legalizado, com CNPJ e tudo, fundado em 1960 no Rio de Janeiro, provavelmente um dos fundadores do lema “bandido bom é bandido morto”. Um grupo que em tese, agiu até o começo dos anos 2000, e que teve como integrante o notório Ronnie Lessa[5] e que nos anos 1980 migrou para o Espírito Santo[6]. Para além desse fato com personagens peculiares da nossa história recente, a letra ainda traz lembrança da criação do Serviço Nacional de Informações – SNI[7], e do atentado do Riocentro[8]. Ambos os momentos que também foram revisitados durante o governo de Jair Bostonaro e de sua familícia. Na era em que as fake news e a pós verdade dão o tom do cotidiano, revisionando fatos numa guinada à direita, quanta manipulação podemos suportar? Mais um ano mais um dia?

Aos Poucos – uma canção que mostra o lado inverso da terceira faixa do álbum, 49. Aqui o eu narrador, fala sobre sua experiencia como pai, seus medos e vontades nesse papel que, ora reproduz o que aprendeu, ora busca acrescentar o que julga ser positivo, mas sem esquecer que o amor sufoca quеm nos ama/Vou transmitindo o que aprendi/Dou meu melhor e te deformo/Melhor pro mundo, pior pra ti/ Enquanto vai parando de sonhar/E se tornando pragmática/Estou te dando o melhor/Da minha neurose. Uma canção sobre o paradoxo de se criar uma outra vida, sem repetir os erros cometidos contra si mesmo.

Criança Versus Criança – uma reflexão sobre a segurança que a pequenez das políticas da cena no hardcore garantiam para certas pessoas. Uma letra que me rememora o tempo que perdi com as classes médias/altas dentro do hardcore e que anos depois, para minha infelicidade, toparia com eles e elas novamente na universidade. Uma canção sobre amizade, tradicional no hardcore, mas que felizmente não cai no chavão do eu, meus amigos fiéis e a traição que sofremos. O quanto estávamos condicionados/Errando alegremente, culpando impunimente/Sendo criança versus criança/E como era tão divertido. Percebo isso, mas pra mim, nunca foi divertido.

Labirinto da Memória – faixa titulo do álbum, é um compêndio sobre os temas que perpassam o álbum, com dizeres que perpassam a memória pessoal e a coletiva, com seus revezes e dificuldades de construção e, mais ainda, de transmitir os aprendizados e conhecimentos adquiridos de geração para geração, numa era em que não deixar registro é não deixar vestígio. Uma era em que cada um faz seu caminho e cada labirinto é um novo labirinto a decifrar.

11 de Setembro – uma das melhores letras para mim. Uma análise histórica do surgimento do neoliberalismo, relembrando o experimento da escola de Chicago no Chile, em 1973. Mas, se naquele momento, era mais interessante um ditador do que alguém da esquerda para libertar o mercado, hoje é com a benção do progressismo que o neoliberalismo avança, inclusive em sua face mais conservadora. Hoje, a miséria já não choca, desde que se tenha alguma representatividade das classes subalternas em espaços de decisão, mesmo que elas não decidam nada. Ademais, para além dessa ideia de que o neoliberalismo quer acabar com o Estado, vale a pena ver o que Wacquant (2012) fala sobre a reestruturação do Estado para a manutenção e continuidade do neoliberalismo, mesmo em sua face mais progressista. A frase Quem me dera ser um banco/Pra que viessem correndo ao meu socorro/A cada erro, a cada tombo/Me reerguendo toda a vez que eu quebrar é uma das melhores construções do disco. Mesmo assim, me remeteu a algo na carreira do Dead Fish que me incomodou, que foi a apresentação da banda no palco Arena Itaú[9]. Dentre muitas outras coisas, o Itaú foi primeiro banco a dar as boas-vindas[10] ao citado Jair Bostonaro quando este assumiu a presidência em 2019. Algo do qual o banco se arrependeu depois[11] (os bancos sempre podem errar, como sugere a letra da música, não é mesmo?). Logo, me perguntei se seria o caso do sonho médio estar chegando para o próprio Dead Fish. E com esse trecho citado da canção e a própria temática da letra como um todo, qual o sentido de uma banda do porte do Dead Fish tocar neste tipo de evento e ainda mais num palco como esse? Muitos vão dizer que sou purista, mas pra mim é questão de caráter mesmo, que eu também aprendi no mesmo circuito que a banda frequenta até hoje. Ok, caráter não paga as minhas contas e nem as suas, mas o Dead Fish está tão mal assim, que precisa tocar no palco do Itaú? Enfim, questões do Realismo Capitalista e da cultura como forma de controle (DE TOMMASI, 2013; 2014a; 2014 b; 2016a; 2016b). Vale a pena citar que o Dead Fish não é o único a fazer isso. Há dezenas de bandas e artistas comprometidos e engajados, que fazem parcerias com fundações do porte do Itaú, ou com a Fundação Natura, ambas intimamente ligadas com a precarização do ensino médio público (CATINI, 2021). Fale baixo, fale baixo! Não queremos assustar o mercado! É o objetivo, é o método! Mudar a alma, mudar a alma!

Bolero – uma ode as coisas significativas que a cena hardcore/punk pode proporcionar. Camaradagem, coletividade e contato com ideias e estilos de vida diferentes, com movimentos sociais, ideologias radicais e uma rede baseada toda em camaradagem. Mas isso, para quem tem pré-disposição para ir além da camaradagem da música e estilo de vida. E quem segue esta senda, de ser crítico como o punk ensina, de ir além dos limites da cena, desse simulacro de lugar seguro que se torna cômodo, não tem toda uma rede baseada em camaradagem, justamente por criticar esse mundo ideal. Até porque essa camaradagem também pode se dar mais por uma questão de afinidades musicais entre garotos brancos, do que por algum pressuposto político, salvo as, cada vez mais raras, exceções. Num mundo hostil, na maioria das vezes, a cena que se caracterizou por produzir contracultura crítica, e que agora tem mais interesse em vender roupas intimas de bandas e bonés de liderança messiânicas progressistas, dá uma virada de chave de 360 graus. E parece não haver litros de suor e sangue suficientes para mudar isso. Mas eu também agradeço por ter encontrado tanto aqui, para que eu pudesse conseguir continuar perdido.

Divino Caos – uma grande combinação entre letra e música do disco. Um tratado científico inexato sobre o que significa ser humano. Viver é uma contradição em diversos aspectos. Não há bem, não há mal/Apenas esse divino caos e as escolhas que fazemos em meio a ele. Ninguém é especial.

Você Conhece Pistóia? – faixa que fecha o disco perfeitamente, é sobre não permanecer de joelhos frente à uma sociedade que tolhe, conforma, limita. Sobre ser domesticado e romper grilhões. Sobre ser condicionado à um modelo comportamental e subjetivo e romper com ele. Se não aceito o molde social e o falso conforto que este oferece, porque eu deveria aceitar o mesmo do hardcore/punk? Se o punk é uma atitude de contestação, porque eu deveria gostar do mesmo quando este também carrega valores neoliberais, de conformação, controle e consumo desmesurado? Quando este começa a funcionar como um cachorro correndo atrás do próprio rabo? Quando este passa de ser um meio para tornar-se um fim em si mesmo? Eu defendi suas ideias/Eu desejei o seu futuro/Trabalhei com afinco, te imitei/Queria ser igual/Já não posso mais…

Este disco pode ser ouvido gratuitamente aqui:  https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mdBYMrN18DGLiyouuowwYWHSyWemTrYWU.

E para adquiri-lo em mídia física, basta pesquisar em qualquer loja especializada em róque.

Referências

CATINI, C. Empreendedorismo, privatização e o trabalho sujo da educação. Revista USP, [S. l.], n. 127, p. 53–68, 2020. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i127p53-68. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/180045.. Acesso em: 29 mar. 2024.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DE TOMMASI, Lívia. Culturas de Periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agir político. Política e Sociedade, Florianópolis, vol. 12, pp. 11-34, 2013.

_________________. Tubarões e peixinhos: histórias de jovens protagonistas. Educação e Pesquisa (USP. Impresso), v. 40, p. 533-548, 2014.

_________________. Juventude, projetos sociais, empreendedorismo e criatividade: dispositivos, artefatos e agentes para o governo da população jovem. Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. 6, p. 287-311, 2014.

________________. Cultura da Performance e Performance da Cultura. CRÍTICA E SOCIEDADE: revista de cultura política, v. 5, p. 100-126, 2016.

________________. Jovens produtores culturais de favela. Linhas Críticas, [S. l.], v. 22, n. 47, p. 41–62, 2016. DOI: 10.26512/lc.v22i47.4766. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/4766. Acesso em: 8 mar. 2022.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

_____________. Por uma revolução africana – Textos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

_____________. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

WACQUANT, L.. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, p. 505–518, set. 2012.

Notas


[1]  De acordo com informações do portal Lar Montessori, “[o] Método Montessori é a perspectiva educacional desenvolvida por Maria Montessori e seus colaboradores [1] a partir da observação do comportamento de crianças em ambientes estruturados e não estruturados. Seu objetivo é ajudar o desenvolvimento da vida da criança, de forma integral e profunda”. Maiores informações em: https://larmontessori.com/o-metodo/. Acesso em 17/03/2024.

[2] “Ministério cancela ato sobre 60 anos do golpe militar após decisão de Lula”. Folha de São Paulo (12/03/2024): https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/ministerio-cancela-ato-sobre-60-anos-do-golpe-militar-apos-decisao-de-lula.shtml. Acesso em 17/03/2024.

[3] Esse e outros livros você pode encontrar no sebo/livraria ambulante e virtual Palavras são Navalhas. Para maiores informações, acesse: https://www.instagram.com/palavrassaonavalhas?utm_source=qr&igsh=MWc4ZmF1bjBjbHJtcQ==.

[4] “As duas mortes que deram início ao grupo de extermínio Scuderie Le Cocq, no Rio”. O Globo (04/10/2019): https://www.leiaisso.net/z8e7h/. Acesso em:29/03/2024.

[5] “Scuderie Le Cocq: A origem do grupo de extermínio do qual Ronnie Lessa fez parte”. O Globo (21/03/2024): https://www.leiaisso.net/i877f/. Acesso em: 29/03/2024.

[6] “Entenda o que foi a Scuderie Le Cocq e a relação com a política no ES”. A Gazeta (05/10/2022): https://www.agazeta.com.br/es/politica/entenda-o-que-foi-a-scuderie-le-cocq-e-a-relacao-com-a-politica-no-es-1022. Acesso em: 29/03/2024.

[7] “Os registros inéditos do SNI que espionou mais de 300 mil brasileiros na ditadura”. Carta Capital (27/03/2024): https://www.cartacapital.com.br/politica/os-registros-ineditos-do-sni-que-espionou-mais-de-300-mil-brasileiros-na-ditadura/ . Acesso em: 29/03/2024.

[8] “Riocentro: o 247 obtém depoimento do capitão Wilson Machado, guardado há 43 anos”. Brasil 247 (28/03/2024): https://www.brasil247.com/blog/riocentro-o-247-obtem-depoimento-do-capitao-wilson-machado-guardado-ha-43-anos . Acesso em: 29/03/2024.

[9] “Em palco alternativo do Rock in Rio, Dead Fish mostra estar mais vivo do que nunca”. Diário do Rio (03/09/2022): https://diariodorio.com/em-palco-alternativo-do-rock-in-rio-dead-fish-mostra-estar-mais-vivo-do-que-nunca/. Acesso em: 29/03/2024.

[10] “Relatório do Itaú sobre Bolsonaro e investimentos causa críticas nas redes”. – UOL (30/10/2018):  https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/30/bolsonaro-itau-investimentos-bolsa.htm. Acesso em: 29/03/2024.

[11] “Arrependido, dono do Itaú diz que “havia grande expectativa com a eleição” de Bolsonaro”. Fórum (28/09/2021): https://revistaforum.com.br/politica/2021/9/28/arrependido-dono-do-itau-diz-que-havia-grande-expectativa-com-eleio-de-bolsonaro-103916.html. Acesso em: 29/03/2024.

Os imundos do espírito opaco: Branquitude, racismo e classismo na identidade nacional através da canção

Introdução

Este pequeno ensaio tem por objetivo, ainda que de modo incipiente, fazer uma reflexão acerca da identidade popular dentro da música brasileira, ao longo dos anos. Tal reflexão tem por intuito pontuar e entender, como a figura do povo brasileiro, em especial aquele marginalizado e alijado das benesses sociais (particularmente os pretos e pobres) foi representado no ideário musical brasileiro, ao longo do último século. Apesar do enorme recorte temporal, este trabalho se apoiará em três momentos e linguagens musicais específicas: O Samba durante o Estado Novo, a MPB durante os anos de chumbo e o Rap, nas duas últimas décadas do século XX. Tal reflexão levará em conta a relação entre as citadas produções, e sua relação não só com as forças governamentais, mas também com os setores mais progressistas da sociedade e a indústria cultural, que serve a ambos os interesses, em diferentes momentos.

De que lado você samba? Você samba de que lado? – O Samba e a figura do Malandro no Estado Novo.

No início do século XX, o samba era o ritmo mais apreciado entre a população mais pobre da época. Temas como a sobrevivência, as dificuldades da vida e a realidade dos pobres e negros nos morros cariocas é que davam a tônica das canções, que também abordavam o amor e outros sentimentos. Mas o que marcou o gênero musical à época foi a figura do malandro. O malandro era o sujeito que buscava superar as adversidades da vida através de meios escusos como a jogatina, pequenos golpes e em determinadas situações, até mesmo alguns assaltos. Era uma personagem peculiar dos morros cariocas, que dentre outras coisas, também era sambista. Ou pelo menos, uma figura muito comum dentro do samba da época. Uma personagem real, que além de estampar as colunas policialescas da época, compunha sambas e era “herdeiro” direto do regime escravocrata e de sua falsa abolição. Marginalizado de nascimento, daí advinha sua malandragem pra sobreviver. Ou melhor, sua estratégia, ainda que problemática.

Em meio a já consolidada popularidade do samba e da figura do malandro, assim como da vadiagem atribuída a este último, durante os anos de 1920 até 1945, o samba começa a sofrer algumas alterações como apresenta José Adriano Fenerick (FENERICK, 2005). A fim de se criar uma identidade nacional (que parecia mais para exportação e não para se criar uma unidade nacional), devido a sua popularidade, o samba é eleito como o ritmo brasileiro por excelência. Porém, para alcançar esse status, se “fazia necessário” que o mesmo se livrasse tanto da sua figura do malandro, como da sua origem negra, como pode se depreender do trabalho de Adalberto Paranhos (PARANHOS, 2015). Principalmente durante o Estado Novo, de Getúlio Vargas.

A partir dos anos trinta, figuras como Carmen Miranda e Noel Rosa, passam a encarnar a “civilização” (domesticação) do samba. A primeira, a partir de um estereótipo de mulher brasileira que não era do Brasil e muito menos do samba (Carmen, além de portuguesa, era branca). O segundo, apesar de origem humilde, era branco e logo se atrelou a lógica trabalhista de Vargas, trocando a figura do malandro pela figura do boêmio, “mas trabalhador e de boa índole”. Dessa forma, o que se pode depreender dessa tentativa de criar uma identidade nacional a partir de medidas nada inclusivas, é que além de não levar em conta os anseios da população negra, pobre e marginalizada, tal ação – além de reforçar a base racista da estrutura social brasileira – ainda serviu como forma de controle da organização popular, suprimindo de antemão a reprodução de episódios como a Revolta da Vacina e a Greve Geral de 1917, onde a participação de figuras populares como o malandro também foram importantes. Um exemplo que encarna essa figura é o “Prata Preta” que, munido de sua navalha, de uma faca, duas pistolas e golpes de capoeira, botou medo nos agentes da lei durante a Revolta da Vacina.

Assim, se pode entender que a ideia de criação de uma identidade nacional, nesse contexto, ainda estava intimamente ligada ao processo de eugenia, de embranquecimento social. Artistas como Carmen Miranda e Noel Rosa ajudaram a reforçar essa ideia e certo estereótipo de “brasilidade” não só no Brasil, mais internacionalmente. Principalmente nos EUA, com o qual o Brasil buscava manter uma política de boa vizinhança, e que acolheu e difundiu mundialmente a “brasilidade” de Carmen Miranda em diversos filmes, como afirmam Liv Sovik (SOVIK,2009) e os já citados José Adriano Fenerick e Adalberto Paranhos. Tal brasilidade se caracterizava pela mulher exótica, tropical, sempre com um sorriso e sempre alegre, além de muita sensualidade e samba no pé, onde tanto a desigualdade social quanto a racial eram amenizados pela “alegria contagiante do povo brasileiro”.


A gente humilde – O povo brasileiro e o projeto nacional popular dentro da brasilidade revolucionária da MPB.

Segundo Marcelo Ridenti (RIDENTI, 2010), no período de 1946 a 1964, a música brasileira passa por uma reformulação em relação a época do Estado Novo, reflexo de uma abertura democrática e consequentemente, de uma maior complexidade e diversidade. Com o surgimento da Bossa Nova, que elitizou o samba e internacionalizou de vez a música brasileira – reinserindo um outro ideário de brasilidade dócil e higienizado – usando novamente um estereótipo de beleza feminina que não correspondia à realidade do povo brasileiro (a “famosa” garota de Ipanema), surge também, uma nova perspectiva de música brasileira. O que mais tarde seria chamado de Música Popular Brasileira. De organizações como o ISEB e o CPC da UNE, emana uma nova compreensão da sociedade brasileira, tal qual os interlocutores desse momento: intelectuais acadêmicos e artistas que, dentre outras coisas, em suas obras retratam o novo movimento social, assim como suas possibilidades de devir.

Para tanto, e em função da identidade nacional submetida aos interesses capitalistas disseminada durante a Era Vargas, tais intelectuais vêem a necessidade da criação de uma nova identidade nacional. Uma identidade nacional popular, que fosse de encontro não só aos anseios dos setores mais progressistas e/ou de esquerda do país, mas também que estivesse alinhada com as revoluções anticoloniais e socialistas da época, como a cubana e a vietnamita.

É nesse contexto que surge, a partir desses intelectuais e artistas engajados, a ideia de uma revolução brasileira, que teria como “sujeito revolucionário” o povo brasileiro, tal qual idealizado pela noção de identidade nacional popular. Tal identidade, se referia a certa idealização do que eram as parcelas marginalizadas da sociedade, como os trabalhadores rurais, os pobres, e os negros. Durante o processo de urbanização brasileira, os marginalizados das cidades também foram incluídos nesse bojo. É o que Marcelo Ridenti chama de “estrutura de sentimento da brasilidade (romântico) revolucionária”.

Uma das características desses intelectuais engajados, era a sua “opção por ser do povo”, já que viam na grande massa de marginalizados da nação, o elemento insurgente necessário para levar adiante a revolução brasileira. Porém, ao enunciar sua opção pelo povo – ainda que munido de boas intenções – esse grupo de intelectuais de classe média/alta em sua maioria[1] ignorou a própria autodeterminação dos subalternos que primava por defender, ao idealizar e romantizar estes. Dito de outra forma, ao construir sua interpretação acerca da identidade nacional popular, objetificando a população pobre, negra e marginalizada, esses intelectuais passaram por cima de questões como a integração do negro na sociedade brasileira, os resquícios da escravidão, a desigualdade de gênero e até mesmo as questões de classe existentes entre eles (os intelectuais) e o povo que idealizavam em nome da superação do capitalismo, que era o fim último da revolução.

Com o advento do golpe de 64, a situação se torna mais tensa. Esse projeto é estrangulado pelos militares (não em função das deficiências do projeto de revolução brasileira advindo da esquerda, mas sim pelos aspectos positivos desse projeto) e o regime totalitário se instaurou. O povo, aquele que não fazia parte do governo e nem da elite progressista/de esquerda, foi mais uma vez esquecido e ficou em meio ao fogo cruzado, sem muita certeza do que se passava. Porém, também sofrendo consequências do regime totalitário, através de grupos de extermínio como o famigerado esquadrão da morte, o que mais tarde se tornaria um modus operandi da polícia militar nas periferias do Brasil, na execução de pretos e pobres. Ainda, sob o regime ditatorial, a indústria cultural no Brasil, apesar de tudo, caminhou a passos largos, municiada de gravadoras, estúdios cinematográficos e companhias de teatro. Essas por sua vez, tinham inúmeros problemas com a censura.

Nos anos 70, o projeto da MPB é retomado, na perspectiva não mais de uma revolução brasileira, mas no contexto da abertura política e da redemocratização do país, que só acontecerá de fato nos anos 80, com as diretas já, num contexto onde o projeto nacional popular declina de vez, segundo Daniela Vieira (SANTOS, 2014), tanto em função de suas próprias falhas, como em função de certa herança hedonista do desbunde tropicalista, onde alguns artistas intelectuais do porte de Caetano Veloso, rompem com o projeto nacional popular dos setores mais próximos à esquerda convencional da época. Ainda assim, figuras como a de Caetano Veloso e Chico Buarque, ainda são entendidas como intelectuais porta-vozes da realidade brasileira. Vale citar, que ambos são entendidos socialmente como brancos e nenhum possui origem humilde. Chico é filho de Sérgio Buarque de Hollanda e Caetano, apesar de não ser filho de um intelectual, é filho de um funcionário público, José Teles Velloso, o que na época era algo de destaque.


A juventude negra agora tem a voz ativa (pois quem gosta de nós, somos nós mesmos): O Rap, o nascimento do sujeito periférico e a periferia no centro de todas as coisas.

Ainda durante os anos 80, o cenário político social vai mudando. O surgimento do PT (Partido dos Trabalhadores) traz consigo a figura de um operário oriundo das classes subalternas, que havia despontado nas greves do ABC, na década anterior. Se tratava de Luiz Inácio “Lula” da Silva. Os artistas da MPB já estão consolidados na indústria cultural brasileira e o antigo projeto nacional popular já não faz tanto sentido. Em sua tese intitulada As Representações de Nação nas Canções de Chico Buarque e Caetano Veloso: Do Nacional Popular à Mundialização, Daniela Vieira afirma que:

[p]articularmente, Qualquer Coisa, Odara e Muito Romântico compartilham da nova estrutura de sentimento que se delineia a partir de fins dos anos 1970 e, especificamente, esta última canção revela a derrocada da cultura política nacional-popular na MPB, bem como o afastamento de Caetano das “questões nacionais”. Tenciono demonstrar como essa fase de transição possibilita tracejar os novos rumos que a canção MPB foi incorporando no capitalismo tardio, distanciando-se de um projeto nacional para uma proposta de nação que privilegia não as classes sociais, mas as chamadas “identidades”. Nu com a minha música e Jeito de Corpo orientam-se nesse caminho. Podres Poderes, além de tratar desse assunto e dos aspectos de corrupção da realidade nacional, já na linguagem do rock, questiona o legado da tradição da MPB e expressa o declínio do radicalismo tropicalista. (SANTOS, 2014, págs. 26/27)

Ao final dessa década, nas periferias de São Paulo, mais especificamente na Zona Sul, surge um grupo de Rap – estilo musical nascido nos bairros negros e latinos pobres dos EUA – chamado Racionais MC’s. O grupo, para além da música, tem um projeto de resgatar a identidade negra, pobre e periférica e reinventá-la de maneira positiva. Moradores de bairros violentos e marginalizados – dentre eles o Capão Redondo, que havia alcançado o status de um dos bairros mais violentos do mundo – os integrantes do grupo fazem parte do Movimento Hip Hop[2], que começa a crescer em São Paulo.

Nessa altura, as periferias eram permeadas pelo trabalho de base de setores progressistas da igreja católica, as então chamadas CEBs[3] (Comunidades Eclesiais de Base), que eram ligadas a Teologia da Libertação[4]. Esta por sua vez, foi um dos grupos que fundou o então Partido dos Trabalhadores e organizou boa parte dos movimentos populares por moradia e afins, nas periferias. Esse trabalho de base deixa de existir, quando o PT opta por entrar de vez no jogo eleitoral tradicional, abandonando assim sua base popular, como afirma o sociólogo Tiarajú Pablo D’Andrea (D’ANDREA, 2013).

E é nesse contexto que o Rap/Hip Hop vai ganhando notoriedade pelas periferias de São Paulo e do Brasil. Especialmente pela voz do grupo Racionais MC’s. Conforme a periferia se vê abandonada politicamente pelos supracitados trabalhos de base, outros setores sociais vão ganhando espaço dentro dela além do Rap: o crime (PCC) e as igrejas neopentecostais. Tal hipótese é descrita com detalhes tanto nos trabalhos de Tiarajú como em Gabriel Feltran (D’ANDREA, 2013; FELTRAN, 2013). Assim, vítimas do preconceito racial e social, alheios aos bens de consumos e aos direitos mais básicos como ensino de qualidade, moradia, saúde pública e afins, os moradores das periferias – principalmente os mais jovens – vão sobrevivendo e se educando politicamente e socialmente, em boa parte pelas críticas contidas nas letras dos grupos de rap como o Racionais MC’s. Estes que, por sua vez, se politizaram através do Projeto Rappers[5], criado e organizado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra[6].

Como parte de seu projeto, em linhas gerais, o Racionais MC’s se torna o principal veículo da “voz dos excluídos”. A cada lançamento de seus trabalhos, vão arrebatando uma legião de admiradores, de “manos e minas” que os acompanham e se identificam com sua sonoridade e a realidade retratada em suas letras. Alheios à uma espécie de projeto nacional e sujeitos a toda sorte de malogros sociais, eles criam uma subjetividade na periferia que, com o passar dos anos vai se positivando. Vai da denúncia ao racismo e a violência às estratégias para sobreviver no inferno, da desigualdade social e racial. É a primeira vez que a realidade negra e pobre é colocada no âmbito nacional por seus sujeitos, sem alegorias e sem romantização.

Apesar da proximidade do grupo com o Partido dos Trabalhadores, este nunca assumiu nenhuma ligação direta ou filiação ao partido. Ao que aparenta, segundo diversas entrevistas cedidas pelos Racionais e por Mano Brown[7], a proximidade se dá mais pela origem humilde com a figura de Lula e do antigo trabalho de base do PT, do que por uma proximidade ideológica partidária socialista. Mesmo colocando a realidade da periferia – e por que não, da maioria do povo brasileiro – o grupo ainda encontrou diversos limites como a questão de gênero, sendo muito infeliz em retratar a mulher e a diversidade sexual em suas canções. Algo que mudou apenas nos últimos anos, em função do crescimento da reivindicação de grupos Feministas e LGBTQIA+.


Conclusão: “Essa é pra quem é preconceituoso e diz que branco não pode tocar samba[8]

Ao longo dos três tópicos deste texto, fica evidente a exclusão do sujeito negro, pobre ou não branco, mas a inclusão simbólica ou aparente de sua cultura no ideário nacional. Nos anos 20/30, a imagem do malandro tal qual a origem negra e da senzala não podiam fazer parte da identidade nacional, pois contrariavam a imagem produtivista que Getúlio Vargas queria imprimir ao seu governo. O exotismo sobre o gingado da mulher brasileira, o samba no pé, o bom malandro (boêmio, mas branco e trabalhador) por mais que não correspondessem com a realidade, eram o desejado e aceito. Serviam para a exportação. Já a realidade negra e pobre, que refletia o racismo à brasileira do Estado forjado na sociedade escravocrata, não podia vir à tona, de acordo com o projeto de embranquecimento da nação.

Já com o surgimento da MPB e de uma nova perspectiva da sociedade brasileira, outras realidades foram abarcadas. O pobre, o negro, os marginalizados foram absorvidos pelo projeto nacional popular gestado pelos setores progressistas e intelectuais da sociedade, que eram basicamente brancos e de classe média/alta. Apesar de sua “opção pelo povo” (que por vezes soa como uma mea culpa pela concentração de privilégios) esses intelectuais engajados romantizavam as figuras populares, as exotizavam (embora numa outra chave) tal qual o governo de Getúlio e as tratavam com certa inferioridade, como alguém que precisasse ser tutelado por uma consciência maior e melhor. Nas palavras de Ridenti,

[o]s artistas engajados das classes médias urbanas identificavam-se com os deserdados da terra, ainda no campo ou migrantes nas cidades, como principal personificação do caráter do povo brasileiro, a quem seria preciso ensinar a lutar politicamente. (RIDENTI, 2010, pág. 91)

Tal aspecto de representação racista, classista e condescendente, só é superado com o surgimento do rap nacional, ao final dos anos 80. Este, por sua vez, fez o esforço de colocar na ordem do dia, a situação de negros, pobres e migrantes nordestinos, que vivem de maneira desumana nas periferias do Brasil. E o fez de dentro pra fora, de maneira orgânica, sem estar vinculado nem a um projeto de nação e muito menos à indústria cultural até então. Tudo isso num contexto extremamente violento, com altos índices de mortalidade como o periférico. É a partir dessa movimentação que o sujeito periférico entra em cena, como aponta Tiarajú Pablo D’Andrea. É essa mobilização ocorrida nas periferias do Brasil que rompe com a normatividade branca, com a branquitude que permeia as representações culturais e simbólicas de negros e pobres na sociedade brasileira.

E as representações sempre foram as mais terríveis possíveis. Pois mesmo com o discurso harmônico da democracia racial, de um país multicultural, onde ninguém é 100% branco, ainda hoje ouvimos frases como a que dá título a esta parte do texto. Segundo a professora Liv Sovik,

(…) o discurso da mestiçagem não significa que os setores dominantes se imaginam sempre como não brancos. A adoção do discurso da mestiçagem é uma antiga concessão incorporada no decorrer dos anos pelo senso comum, à presença maciça de não brancos em uma sociedade que valoriza a branquitude e uma antiga e atual forma de resistência ao olhar eurocêntrico. Esse reconhecimento não desbanca os brancos das classes dominantes. O que um dia já foi uma vitória cultural e política contra a opressão eurocêntrica já foi capturado pelo conservadorismo reinante e a naturalização de relações sociais racistas. (SOVIK, 2009, pág. 39)

E dessa forma, termino esse ensaio, apontando que não só a tentativa de criação de uma identidade nacional Getulista, foi racista. O próprio projeto da nacional popular da MPB também tem origem na branquitude e carregou consigo diversos elementos dela, além de inúmeras questões de classe. E agora, atualmente, mesmo com uma maior positivação das identidades negras e periféricas dos últimos anos, o futuro que se apresenta é – como aponta Liv Sovik – de uma absorção pela indústria cultural que ainda é branca, das últimas conquistas alcançadas em torno da questão racial e da descriminalização da pobreza.


Bibliografia:

AZEVEDO, Amailton Magno; SILVA, Salomão Jovino da. Um raio x do movimento Hip-Hop. Revista da ABPN, v. 7, n. 15 • nov. 2014 – fev. 2015, p.212-239. (PDF)

DINIZ, Sheyla Castro. Desbundados e marginais: a MPB ‘pós-tropicalista’ no contexto dos anos de Chumbo, Anais do XII Congresso da BRASA, Londres, 2014. Disponível em:http://www.brasa.org/wordpress/Documents/BRASA_XII/Proceedings/Sheyla%20Castro%20Diniz %20-%20Desbundados%20e%20Marginais.

FENERICK, José Adriano. Nem do Morro, Nem da Cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005, p. 253-266.

GARCIA, Walter. Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s (1990-2006). In: Idéias – Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, v. 1, p. 81-110, 2013.

KEHL, Maria Rita. A Frátria Órfã: o esforço civilizatório do Rap na Periferia de São Paulo. In: KEHL,M.R. (Org.), In: Função Fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, p. 209-244.

LEAL, Sérgio José de Machado. Acorda Hip Hop! Rio de Janeiro, Aeroplano, 2007.

PARANHOS, Adalberto. Os desafinados: sambas e bambas no “Estado Novo”. São Paulo: Intermeios, 2015, p. 89-137.

OLIVEIRA, Acauam Silveiro de. O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. São Paulo. Tese. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 350-389.

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária como Estrutura de Sentimento: os anos rebeldes e sua herança. In: ____. Brasilidade Revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Unesp, 2010, p. 85-119.

SANTOS, Daniela Vieira. As Representações de Nação nas Canções de Chico Buarque e Caetano Veloso: do nacional popular à mundialização. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia). IFCH, Unicamp, 2014.

SOVIK, Liv. Aqui Ninguém é Branco. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2009.


[1] Segundo Daniela Vieira, “além de um conceito, a arte nacional popular à brasileira materializou-se na experiência artística intelectual do país em busca da nacionalização da linguagem artística somada à preocupação com o público e com um ideal formador da nação. Assim, me parece que o nacional popular à brasileira, se orientou como manifestações culturais heterogêneas de setores progressistas da classe média que tinham a intenção de se vincular ao “povo” a fim de constituir o bloco histórico rumo a uma nova cultura, sem precisas teorizações”(SANTOS, 2014, págs 10/11).

[2] O Hip Hop também nasce nos bairros negros/latinos e pobres dos EUA como o Bronx e o Harlem. Além da música Rap, o movimento conta com dançarinos (Break Boys e Break Girls) e Grafiteiros. Além disso, conta com o quinto elemento (os outros são o Mc, o Dj, o Break e o Grafiti) que é o conhecimento, que acontece na forma de posses (grupos de ação social organizados pelos membros do Hip Hop). Para maiores informações, ver o trabalho de DJ TR (LEAL, 2007).

[3] As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) surgiram no Brasil como um meio de evangelização que respondesse aos desafios de uma prática libertária no contexto sociopolítico dos anos da ditadura militar e, ao mesmo tempo, como uma forma de adequar as estruturas da Igreja às resoluções pastorais do Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965. Encontraram sua cidadania eclesial na feliz expressão do Cardeal Aloísio Lorscheider: “A CEB no Brasil é Igreja — um novo modo de ser Igreja”. Disponível em: http://www.vidapastoral.com.br/artigos/eclesiologia/a-identidade-das-cebs/. Acesso em: 29/07/2018.

[4] A Teologia da libertação é uma corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia, para concretar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais. É considerada como um movimento supradenominacional, apartidário e inclusivista de teologia política, que engloba várias correntes de pensamento que interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. Ela foi descrita pelos seus proponentes como uma reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, em vista dos problemas sociais, mas seus oponentes a descrevem como um marxismo, relativismo e materialismo cristianizado. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_liberta%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 29/06/2018.

[5] Segundo o portal Geledés, “Desenvolvemos de 1992 a 1998 um projeto específico para a juventude negra chamado Projeto Rappers. Não foi um projeto que decorreu de uma definição institucional; ele foi provocado por demanda de jovens negros pertencentes a bandas de rap da cidade de São Paulo”. Maiores informações em: https://www.geledes.org.br/projeto-rappers/

[6] Fundada em 30 de abril de 1988, Gelédes é uma organização da sociedade civil que se posiciona em defesa de mulheres e negros por entender que estes dois segmentos sociais padecem de desvantagens e discriminações no acesso ás oportunidades sociais em função do racismo e sexismo vigente na sociedade brasileira. Maiores informações em: https://www.geledes.org.br/category/geledes-instituto-da-mulher-negra/quem-somos/

[7] Ver as entrevistas “Red Bull Entrevista Racionais Mc’s” Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=aqx8TyV85Ic&t=3s; “Mano Brown, um sobrevivente do inferno – Entrevista completa” – Disponivel em:  https://www.youtube.com/watch?v=gMT9cXizDYQ&t=937s; Roda Viva | Mano Brown | 2007 – Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IaQWmNkqkSg.

[8] Frase proferida por Mallu Magalhães, no programa “Encontro com Fátima Bernardes” na Rede Globo de televisão. Tal frase foi proferida em função a  polêmica em torno da apropriação da cultura negra e objetificação dos corpos negros em seu clipe “Você não presta”. Para maiores informações, acesse: https://videos.bol.uol.com.br/video/mallu-polemiza-ao-dedicar-musica-a-quem-diz-que-branco-nao-pode-tocar-samba-04024C193562D4916326.