Resenhas crísicas # 01: Dead Fish – Labirinto da Memória CD

Eu estive em sua guerra/Limpei suas armas
Eu lotei o seu porão/Matei ser quem eu pensava
Eu defendi suas ideias/Eu desejei o seu futuro
Trabalhei com afinco, te imitei/Eu me nutri do seu lixo
Me tornei educado/Recebi meu salário/Acatei o que me foi dito
Queria ser igual/Já não posso mais…
(Você Conhece Pistóia? In Labirinto da Memória, por Dead Fish, 2024)

Inauguro essa seção de resenhas crísicas do Lengua Armada com o último disco do Dead Fish, lançado em janeiro último. As resenhas aqui, serão sobre materiais culturais ligados, de certa forma, ao que se chama de contracultura, ou cultura de resistência, seja em que formato for, mas principalmente música e livros. Possivelmente também haverá resenhas de materiais da grande indústria cultural (há alguma coisa que está fora dela hoje?), como filmes e afins. E de antemão, se trata de minha interpretação, com o arcabouço de ideias e experiência que possuo e que me movem. Não há profissionalismo, não há análises requintadas e nem ensaios acadêmicos, apesar dos textos aqui sempre possuírem referencias da ciências sociais, história e filosofia. Estas também fazem parte das experiências que possuo. Se busca por tratados acadêmicos, passação de pano, lambeção de bunda, e textos de colunas de estilo de vida e mercado cultural, pode parar de ler por aqui já e ir gastar seu tempo com outra merda qualquer. Se trata de uma leitura crísica sobre materiais que me interessam e gosto, mesmo que tenha uma opinião crítica sobre. Dito isto, vamos à resenha.

Acompanho o trabalho do Dead Fish desde o final da década de 90 do século passado. Principalmente a partir do disco “Sonho Médio”, de 1999. Fui muito mais próximo de outras bandas capixabas como a Mukeka di Rato, a Oposição, a Kusta Pässää e a Dr. Mobral. Até porque estás circularam mais em eventos Anarcopunks ou correlatos, do que a Dead Fish. Mas apesar disto e da letra ruim de “Anarquia Corporation”, que demonstra que a banda não conhece nada sobre anarquismo pra além daquilo que viram no punk, sempre gostei muito do modo de escrever do Rodrigo Lima. Acho o mesmo um bom letrista. Um dos melhores do hardcore, na minha opinião. Gosto muito da relação entre a perspectiva pessoal – geralmente abordando questões sobre amizade e contradições das relações humanas – e os fatos políticos de maior amplitude que Rodrigo faz em suas letras, principalmente ligadas à política nacional. Acho o ponto mais alto da banda. Isso sem contar que a banda que segue na trilha do hardcore melódico, sendo a principal representante deste estilo musical aqui no Brasil, sem cair na repetição de formulas ou em mera cópia das bandas em evidência no estilo. Acredito que seu último disco é uma prova inconteste disto.

Labirinto da Memória, seu álbum mais recente é sua décima obra de estúdio. Lançado no dia 15 de Janeiro último, o álbum, segundo informações repercutidas nas redes dissociativas e nas mídias especializadas, se trata de uma mistura de rememorações pessoais (principalmente de Rodrigo) com os livros Realismo Capitalista, de Mark Fisher (2020) e a Nova Razão do Mundo, de Pierre Dardot e Christian Laval (2016), dentre outras coisas. Tal como dito, o disco é um apanhando de memórias e referencias e assim o é a arte que compõe o encarte do cd, que além de conter as letras (algo que ao longo do tempo não parece ser mais comum nesse meio), conta com desenhos de referências simbólicas de cada letra, na capa juntamente com o desenho de um elefante tomando chá, numa referência a memória desses mamíferos gigantes e maravilhosos. Ademais, tal referência faz contraponto, em meu punto de vista, a falta de memória política que é comum no Brasil, principalmente, ou ainda, a memória seletiva impressa em nossas mentes pelas redes dissociativas, nos distraindo de nós mesmos e da realidade pragmática através do pragmatismo virtual. A contracapa faz referência ao quarto de um teenager punk rocker das classes médias dos anos 1990, com uma parede com prateleiras, que contêm fotos de família, livros, garrafas, videogame, aparelho de som com toca fitas, discos, cartazes, adesivos e um skate. Tal imagem também ativou minha memória, tanto ao lembrar do quarto que eu dividia com mais três irmãos – com cartazes e livros e muitos discos também, além de pôsteres, mas com infiltração e as paredes carcomidas – como também do quarto de um antigo amigo do hardcore/sxe, filho de um juiz, que tinha um quarto só pra si, bem similar ao da referida contracapa.

Tal memória também foi ativada pelas próprias passagens das letras, muito boas, mas que se caracterizam por um narrador de classe média, com seus conflitos e suas questões e também privilégios. Estes últimos, referenciados por exemplo, no acesso ao sistema de ensino Montessori[1]. Digo isso justamente pelo fato de minha pessoa ter uma origem social distinta da classe que acessou a Montessori, e por ser cria da escola pública, de hospitais públicos e casas de cultura, também públicas – com todas as suas questões –, como também para também fazer um contraponto a certa classe média branca, que ainda é majoritária também nos espaços do hardcore/punk. E evidente, também porque se trata do meu labirinto da memória.

Ainda sobre a memória, algo que chama a atenção e é de suma importância, especialmente neste momento, em que estamos prestes a passar por 60 anos de golpe militar no Brasil, é a postura (ou falta dela) do governo do atual presidente social democrata/progressista Luiz Inácio Lula da Silva tem optado por se silenciar ante a data[2] – especialmente após quatro anos de governo fascista/populista de seu antecessor – numa clara alusão às alianças políticas que tem construído em nome da governabilidade, que remete aos atos de seu governo anterior que levaram Lula a cadeia e a ascensão do neoliberalismo progressista que anda de mãos dadas com o neoliberalismo conservador. Aliás, ambos se retroalimentam. Mas esse tipo de crítica não faz parte do conteúdo das letras do Dead Fish. Nem em outros trabalhos e nem nesse. Nesse aspecto, o Dead Fish não está só. Muitas bandas do cenário Hardcore abriram mão de uma crítica radical durante os anos do bolsonarismo no poder, para fazer coro à uma “ação progressista burguesa” que só enxerga a eleição como um fim em si mesmo. Só essa questão já daria um texto a parte. Mas voltemos a resenha.

Outro ponto interessante é a já citada influência do livro “Realismo Capitalista”[3], de Mark Fisher. Fisher, em muitas de suas análises fala do uso da cultura – e principalmente das culturas de resistência, alternativas ou independentes – pelo capitalismo. Para mim, é muito significativo pensar sobre as culturas de resistência que me formaram enquanto sujeito e como essas duas contraculturas são tematizadas hoje em dia, a ver o Hardcore/Punk e o Rap/Hip Hop. Vejamos essa passagem de Fisher:

É sempre bom lembrar o papel que a mercantilização desempenhou na produção da cultura no século xx. De todo modo, a velha batalha entre apropriação e recuperação, entre subversão e incorporação, parece coisa do passado. Não estamos lidando agora, como antes, com a incorporação de materiais dotados de potencial subversivo, mas sim com sua “precorporação”: a formatação e a moldagem prévia dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista. Prova disso, por exemplo, é o estabelecimento acomodado de zonas culturais “alternativas” ou “independentes”, que repetem infinitamente gestos de rebelião e contestação como se fossem feitos pela primeira vez. “Alternativo” e “independente” não designam nada fora do mainstream; pelo contrário, são, na verdade, os estilos dominantes no interior do mainstream. (FISHER, 2020, págs. 18/19)

Honestamente, no início do século, apesar de não ter contato e nem arcabouço para fazer tal discussão, o Hardcore/Punk em especial já me transmitia essa questão da cultura como esvaziamento e contenção de uma perspectiva radical, ao se tornar um fim em si mesmo. Tal fato já se tornava perceptivo pra mim, quando a representação e a performance da rebeldia, da resistência e da transformação social se tornaram mais importantes do que as ideias e ações em si. Talvez, como Fisher aponta, o Rap/Hip Hop nunca se deparou com esse problema nos EUA, embora particularmente, eu acredite que essa sim, tenha sido uma questão no Rap Nacional, que foi solapada pelo mercado. E o mercado, não é a face predominante do neoliberalismo. A construção da razão neoliberal não é apenas econômica. É subjetiva também. E nada melhor do que produtos culturais que contemplem os anseios dos consumidores, sejam eles “progressistas” ou “conservadores”, para construir subjetividades condicionadas. Afinal, é como diz o Dead Fish em 11 de Setembro, em alusão a Margareth Thatcher: “A economia é o método, o objetivo é mudar a alma”. Mas atualizando a frase, a cultura além da economia, é o método, também, nos tempos atuais.

Por fim, ainda no que se refere a letra de 11 de setembro e a discussão sobre o Realismo Capitalista, e a discussão sobre o neoliberalismo e seu caráter cultural, vale salientar uma questão que me ocorreu enquanto escrevia este parágrafo. Frantz Fanon e Albert Memmi, dois autores anticoloniais, que em suas obras seminais – Pele Negra, Máscaras Brancas, Por uma Revolução Africana, Os Condenado da Terra (Frantz Fanon) e O Retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador (Albert Memmi) – apontavam, durante a colonização de África, os aspectos psicológicos e culturais da dominação colonial, ao retratar seus impactos nos povos africanos. A negação de si, de sua cultura e sua constituição enquanto pessoa para a aceitação de uma civilização branca, que se supunha superior. E o que é o neoliberalismo, o capitalismo se não o colonialismo aplicado ao resto do mundo, inclusive o ocidente? E quem ele mantém em permanente miséria, se não – principalmente – as pessoas não brancas?

Por fim, farei aqui, uma sessão música a música do disco Labirinto da Memória, do Dead Fish, com minhas impressões gerais, seguindo a ordem das músicas. Antes de tudo, vale reiterar que apesar de gostar das letras do disco como um todo, para mim é perceptível que o eu narrador das canções trata de temas de forma muito particular, de um lugar especifico de um jovem de classe média que, apesar de tudo, teve muitas coisas garantidas devido a sua origem social e econômica. Logo, em alguns ponto me identifico e em outras me distancio.

Adeus, Adeus – para mim, que fui egresso de duas tradições religiosas, o catolicismo e o budismo da Soka Gakkai/Nichiren Shoshu, além de gostar muito de jogos de palavras, essa letra é um deleite. Eu digo adeus à deus, além de ser uma bela construção, direta e significativa de tão simples que é, ficou gravada na minha cabeça. Uma letra bem construída, com um refrão inteligente e direto e reto, como o punk, por vezes, acerta em cheio. Um Deus que impõe medo/Que pune a felicidade com castigo/Que limita o corpo com culpa/De divino não tem nada/Por favor, saia e feche a porta atrás de você/ E vá para a casa do caralho, disgraça (essa última frase é cortesia do autor desta resenha). Já dizia Kropotkn: A única igreja que ilumina é a que queima!

Dentes Amarelos – uma rememoração da transição de criança – onde tudo é novidade e a inocência ajuda a passar por algumas dificuldades – para um ser adulto – onde as dificuldades de criança tomam corpo e o corpo. Aprendendo a ter orgulho dos meus dentes amarelos/Que rangem quando falo, mas se calo, esfarelam. Há pessoas que não possuem nem dentes amarelos, ao menos para morder e ajudar a deglutir o mundo que lhes é imposto goela abaixo, vale dizer, já que na letra, os dentes ficam amarelos mas não caem.

49 – uma canção sobre relação pai e primogênito, dentro da estrutura hierárquica familiar, ainda assim, estrutura familiar. Os silenciamentos, os papéis pré-determinados, as regras, a autoridade e o fim, que é uma certeza indesejada.

Avenida Maruípe – uma infância resguardada pelos muros de uma casa com quintal, mas que acompanhava inocentemente, o sumiço de pessoas e da mata atlântica em nome dos interesses da ditadura militar, que servia aos interesses estadunidenses. A travessia da avenida e o fim da proteção do lar, que propiciou o conhecimento de fato sobre aquilo que os olhos jovens acompanhavam, mas não entendiam. Sempre lembrar pra nunca repetir, tem um impacto muito forte, especialmente neste momento em que tivemos uma pequena amostra oficial – por quatro anos – do passado que nunca foi embora, principalmente nas periferias, que é de onde eu vim e que onde ainda a ditadura some com os filhos que tortura todos os dias e não há quintal que os proteja. Nunca houve. Ainda assim, uma letra muito boa, por retratar uma memória tão atual.

Interrupção – uma das músicas que mais mobilizam a memória coletiva atual. Disjunção da vida em redes sociais, depressão, hiper sexualização, remédios, falsos desejos e transtornos existenciais sem fim. Realismo Capitalista no talo, enquanto a vida verdadeira se contorce em espasmos durante algum reality show inclusivo e representativo. Quer justificar o injustificável/Controlar a narrativa/Achar algum sentido/Onde não há nenhum.

Estaremos Lá – é uma das musicas mais interessantes no quesito da memória, que é a tônica do disco. Um retrato da violência institucionalizada dos militares e seus braços paramilitares, com seus esquadrões da morte. Esses, que atuavam majoritariamente nas periferias e favelas do Brasil, principalmente no sul-sudeste. E nessa questão, é muito interessante a memória resgatada da Scuderie Le Cocq[4], um grupo de extermínio legalizado, com CNPJ e tudo, fundado em 1960 no Rio de Janeiro, provavelmente um dos fundadores do lema “bandido bom é bandido morto”. Um grupo que em tese, agiu até o começo dos anos 2000, e que teve como integrante o notório Ronnie Lessa[5] e que nos anos 1980 migrou para o Espírito Santo[6]. Para além desse fato com personagens peculiares da nossa história recente, a letra ainda traz lembrança da criação do Serviço Nacional de Informações – SNI[7], e do atentado do Riocentro[8]. Ambos os momentos que também foram revisitados durante o governo de Jair Bostonaro e de sua familícia. Na era em que as fake news e a pós verdade dão o tom do cotidiano, revisionando fatos numa guinada à direita, quanta manipulação podemos suportar? Mais um ano mais um dia?

Aos Poucos – uma canção que mostra o lado inverso da terceira faixa do álbum, 49. Aqui o eu narrador, fala sobre sua experiencia como pai, seus medos e vontades nesse papel que, ora reproduz o que aprendeu, ora busca acrescentar o que julga ser positivo, mas sem esquecer que o amor sufoca quеm nos ama/Vou transmitindo o que aprendi/Dou meu melhor e te deformo/Melhor pro mundo, pior pra ti/ Enquanto vai parando de sonhar/E se tornando pragmática/Estou te dando o melhor/Da minha neurose. Uma canção sobre o paradoxo de se criar uma outra vida, sem repetir os erros cometidos contra si mesmo.

Criança Versus Criança – uma reflexão sobre a segurança que a pequenez das políticas da cena no hardcore garantiam para certas pessoas. Uma letra que me rememora o tempo que perdi com as classes médias/altas dentro do hardcore e que anos depois, para minha infelicidade, toparia com eles e elas novamente na universidade. Uma canção sobre amizade, tradicional no hardcore, mas que felizmente não cai no chavão do eu, meus amigos fiéis e a traição que sofremos. O quanto estávamos condicionados/Errando alegremente, culpando impunimente/Sendo criança versus criança/E como era tão divertido. Percebo isso, mas pra mim, nunca foi divertido.

Labirinto da Memória – faixa titulo do álbum, é um compêndio sobre os temas que perpassam o álbum, com dizeres que perpassam a memória pessoal e a coletiva, com seus revezes e dificuldades de construção e, mais ainda, de transmitir os aprendizados e conhecimentos adquiridos de geração para geração, numa era em que não deixar registro é não deixar vestígio. Uma era em que cada um faz seu caminho e cada labirinto é um novo labirinto a decifrar.

11 de Setembro – uma das melhores letras para mim. Uma análise histórica do surgimento do neoliberalismo, relembrando o experimento da escola de Chicago no Chile, em 1973. Mas, se naquele momento, era mais interessante um ditador do que alguém da esquerda para libertar o mercado, hoje é com a benção do progressismo que o neoliberalismo avança, inclusive em sua face mais conservadora. Hoje, a miséria já não choca, desde que se tenha alguma representatividade das classes subalternas em espaços de decisão, mesmo que elas não decidam nada. Ademais, para além dessa ideia de que o neoliberalismo quer acabar com o Estado, vale a pena ver o que Wacquant (2012) fala sobre a reestruturação do Estado para a manutenção e continuidade do neoliberalismo, mesmo em sua face mais progressista. A frase Quem me dera ser um banco/Pra que viessem correndo ao meu socorro/A cada erro, a cada tombo/Me reerguendo toda a vez que eu quebrar é uma das melhores construções do disco. Mesmo assim, me remeteu a algo na carreira do Dead Fish que me incomodou, que foi a apresentação da banda no palco Arena Itaú[9]. Dentre muitas outras coisas, o Itaú foi primeiro banco a dar as boas-vindas[10] ao citado Jair Bostonaro quando este assumiu a presidência em 2019. Algo do qual o banco se arrependeu depois[11] (os bancos sempre podem errar, como sugere a letra da música, não é mesmo?). Logo, me perguntei se seria o caso do sonho médio estar chegando para o próprio Dead Fish. E com esse trecho citado da canção e a própria temática da letra como um todo, qual o sentido de uma banda do porte do Dead Fish tocar neste tipo de evento e ainda mais num palco como esse? Muitos vão dizer que sou purista, mas pra mim é questão de caráter mesmo, que eu também aprendi no mesmo circuito que a banda frequenta até hoje. Ok, caráter não paga as minhas contas e nem as suas, mas o Dead Fish está tão mal assim, que precisa tocar no palco do Itaú? Enfim, questões do Realismo Capitalista e da cultura como forma de controle (DE TOMMASI, 2013; 2014a; 2014 b; 2016a; 2016b). Vale a pena citar que o Dead Fish não é o único a fazer isso. Há dezenas de bandas e artistas comprometidos e engajados, que fazem parcerias com fundações do porte do Itaú, ou com a Fundação Natura, ambas intimamente ligadas com a precarização do ensino médio público (CATINI, 2021). Fale baixo, fale baixo! Não queremos assustar o mercado! É o objetivo, é o método! Mudar a alma, mudar a alma!

Bolero – uma ode as coisas significativas que a cena hardcore/punk pode proporcionar. Camaradagem, coletividade e contato com ideias e estilos de vida diferentes, com movimentos sociais, ideologias radicais e uma rede baseada toda em camaradagem. Mas isso, para quem tem pré-disposição para ir além da camaradagem da música e estilo de vida. E quem segue esta senda, de ser crítico como o punk ensina, de ir além dos limites da cena, desse simulacro de lugar seguro que se torna cômodo, não tem toda uma rede baseada em camaradagem, justamente por criticar esse mundo ideal. Até porque essa camaradagem também pode se dar mais por uma questão de afinidades musicais entre garotos brancos, do que por algum pressuposto político, salvo as, cada vez mais raras, exceções. Num mundo hostil, na maioria das vezes, a cena que se caracterizou por produzir contracultura crítica, e que agora tem mais interesse em vender roupas intimas de bandas e bonés de liderança messiânicas progressistas, dá uma virada de chave de 360 graus. E parece não haver litros de suor e sangue suficientes para mudar isso. Mas eu também agradeço por ter encontrado tanto aqui, para que eu pudesse conseguir continuar perdido.

Divino Caos – uma grande combinação entre letra e música do disco. Um tratado científico inexato sobre o que significa ser humano. Viver é uma contradição em diversos aspectos. Não há bem, não há mal/Apenas esse divino caos e as escolhas que fazemos em meio a ele. Ninguém é especial.

Você Conhece Pistóia? – faixa que fecha o disco perfeitamente, é sobre não permanecer de joelhos frente à uma sociedade que tolhe, conforma, limita. Sobre ser domesticado e romper grilhões. Sobre ser condicionado à um modelo comportamental e subjetivo e romper com ele. Se não aceito o molde social e o falso conforto que este oferece, porque eu deveria aceitar o mesmo do hardcore/punk? Se o punk é uma atitude de contestação, porque eu deveria gostar do mesmo quando este também carrega valores neoliberais, de conformação, controle e consumo desmesurado? Quando este começa a funcionar como um cachorro correndo atrás do próprio rabo? Quando este passa de ser um meio para tornar-se um fim em si mesmo? Eu defendi suas ideias/Eu desejei o seu futuro/Trabalhei com afinco, te imitei/Queria ser igual/Já não posso mais…

Este disco pode ser ouvido gratuitamente aqui:  https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mdBYMrN18DGLiyouuowwYWHSyWemTrYWU.

E para adquiri-lo em mídia física, basta pesquisar em qualquer loja especializada em róque.

Referências

CATINI, C. Empreendedorismo, privatização e o trabalho sujo da educação. Revista USP, [S. l.], n. 127, p. 53–68, 2020. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.i127p53-68. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/180045.. Acesso em: 29 mar. 2024.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DE TOMMASI, Lívia. Culturas de Periferia: entre o mercado, os dispositivos de gestão e o agir político. Política e Sociedade, Florianópolis, vol. 12, pp. 11-34, 2013.

_________________. Tubarões e peixinhos: histórias de jovens protagonistas. Educação e Pesquisa (USP. Impresso), v. 40, p. 533-548, 2014.

_________________. Juventude, projetos sociais, empreendedorismo e criatividade: dispositivos, artefatos e agentes para o governo da população jovem. Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica. 6, p. 287-311, 2014.

________________. Cultura da Performance e Performance da Cultura. CRÍTICA E SOCIEDADE: revista de cultura política, v. 5, p. 100-126, 2016.

________________. Jovens produtores culturais de favela. Linhas Críticas, [S. l.], v. 22, n. 47, p. 41–62, 2016. DOI: 10.26512/lc.v22i47.4766. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/linhascriticas/article/view/4766. Acesso em: 8 mar. 2022.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. São Paulo: Ubu Editora, 2020.

_____________. Por uma revolução africana – Textos Políticos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

_____________. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

FISHER, Mark. Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.

WACQUANT, L.. Três etapas para uma antropologia histórica do neoliberalismo realmente existente. Caderno CRH, v. 25, n. 66, p. 505–518, set. 2012.

Notas


[1]  De acordo com informações do portal Lar Montessori, “[o] Método Montessori é a perspectiva educacional desenvolvida por Maria Montessori e seus colaboradores [1] a partir da observação do comportamento de crianças em ambientes estruturados e não estruturados. Seu objetivo é ajudar o desenvolvimento da vida da criança, de forma integral e profunda”. Maiores informações em: https://larmontessori.com/o-metodo/. Acesso em 17/03/2024.

[2] “Ministério cancela ato sobre 60 anos do golpe militar após decisão de Lula”. Folha de São Paulo (12/03/2024): https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/03/ministerio-cancela-ato-sobre-60-anos-do-golpe-militar-apos-decisao-de-lula.shtml. Acesso em 17/03/2024.

[3] Esse e outros livros você pode encontrar no sebo/livraria ambulante e virtual Palavras são Navalhas. Para maiores informações, acesse: https://www.instagram.com/palavrassaonavalhas?utm_source=qr&igsh=MWc4ZmF1bjBjbHJtcQ==.

[4] “As duas mortes que deram início ao grupo de extermínio Scuderie Le Cocq, no Rio”. O Globo (04/10/2019): https://www.leiaisso.net/z8e7h/. Acesso em:29/03/2024.

[5] “Scuderie Le Cocq: A origem do grupo de extermínio do qual Ronnie Lessa fez parte”. O Globo (21/03/2024): https://www.leiaisso.net/i877f/. Acesso em: 29/03/2024.

[6] “Entenda o que foi a Scuderie Le Cocq e a relação com a política no ES”. A Gazeta (05/10/2022): https://www.agazeta.com.br/es/politica/entenda-o-que-foi-a-scuderie-le-cocq-e-a-relacao-com-a-politica-no-es-1022. Acesso em: 29/03/2024.

[7] “Os registros inéditos do SNI que espionou mais de 300 mil brasileiros na ditadura”. Carta Capital (27/03/2024): https://www.cartacapital.com.br/politica/os-registros-ineditos-do-sni-que-espionou-mais-de-300-mil-brasileiros-na-ditadura/ . Acesso em: 29/03/2024.

[8] “Riocentro: o 247 obtém depoimento do capitão Wilson Machado, guardado há 43 anos”. Brasil 247 (28/03/2024): https://www.brasil247.com/blog/riocentro-o-247-obtem-depoimento-do-capitao-wilson-machado-guardado-ha-43-anos . Acesso em: 29/03/2024.

[9] “Em palco alternativo do Rock in Rio, Dead Fish mostra estar mais vivo do que nunca”. Diário do Rio (03/09/2022): https://diariodorio.com/em-palco-alternativo-do-rock-in-rio-dead-fish-mostra-estar-mais-vivo-do-que-nunca/. Acesso em: 29/03/2024.

[10] “Relatório do Itaú sobre Bolsonaro e investimentos causa críticas nas redes”. – UOL (30/10/2018):  https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2018/10/30/bolsonaro-itau-investimentos-bolsa.htm. Acesso em: 29/03/2024.

[11] “Arrependido, dono do Itaú diz que “havia grande expectativa com a eleição” de Bolsonaro”. Fórum (28/09/2021): https://revistaforum.com.br/politica/2021/9/28/arrependido-dono-do-itau-diz-que-havia-grande-expectativa-com-eleio-de-bolsonaro-103916.html. Acesso em: 29/03/2024.